O menino que descobriu o vento
Com duas pedras o homem dominou o fogo. Ao observar o voo dos pássaros, acreditou que seria possível voar.
Percebendo a necessidade de organizar sua vida coletiva, criou leis. A partir do contato com plantas, criou a agricultura e elaborou remédios. Ao olhar para as estrelas, descobriu meios para localizar-se e definir caminhos para percorrer o mundo.
No trecho inicial do célebre filme “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick, os hominídeos equivalem aos símios, pouco se diferenciando em seu comportamento, agindo de forma animalesca. O passar do tempo trazido de forma rápida nesta sequência do filme de Kubrick, com a liberação das mãos até então usadas para a locomoção, a mudança de postura com o abandono do caminhar quadrúpede e a percepção pela experiência e manuseio de paus e pedras fazem com que o hominídeo se transforme gradualmente em homem. A transição é metaforicamente realizada quando um destes seres pré-históricos lança ao céu seu instrumento de trabalho, ataque e defesa - um pedaço de osso de seus oponentes na luta por terra, água e alimento - e tal instrumental se transforma em uma estação espacial...
Destacar um clássico para falar de uma produção que igualmente conquista o público, baseada numa história verídica, em que novamente os homens se veem diante da luta pela sobrevivência, num ambiente árido castigado pela seca, em que os governantes locais não estão interessados nas agruras do povo, somente em se manter no poder, pode parecer sacrilégio para alguns, no entanto, em seu cerne há elementos que aproximam os dois filmes e que precisam ser evocados.
Estamos em uma sociedade contemporânea, mas ainda com bases tribais, simples e rudimentar, em que uma bicicleta ou um rádio, nos anos 1990, já adentrando a era da revolução da internet, são recursos caros a quem os possui e que se não indicam riqueza, ao menos, oferecem acesso a informação e possibilidade de deslocar-se com rapidez.
“O menino que descobriu o vento”, produzido pela Netflix, lançado em 2019, com direção de Chiwetel Ejiofor, premiado ator do filme “12 anos de escravidão”, é um libelo em favor da humanidade, do estudo, da ciência e do trabalho cooperativo.
Filme sensível, dramático, envolvente, com roteiro na medida certa e atuações destacadas de todo o elenco, com locações que nos colocam em meio ao drama da seca em terras africanas, o que nos mobiliza em relação ao filme é a crença de que a dignidade e a prosperidade são possíveis para a humanidade ainda que tudo ao redor pareça indicar que não.
Desafiado pela natureza, juntamente com sua família e toda a comunidade, a sobreviver em condições inóspitas, que levam muitos a abandonar a localidade e tantos outros a saquear a produção alheia, já bastante reduzida, o filme de Chiwetel nos conta a história de um menino que não se entrega e que busca, naquilo que pôde aprender na escola, a resposta para os problemas de todos.
Inspirador, diamante bruto, produção que tem foco na humanidade de seus protagonistas e na capacidade das pessoas superarem as mais duras condições a partir do conhecimento, da ciência e do trabalho colaborativo, “O menino que descobriu o vento” é uma produção para ser vista e revisitada todas as vezes em que, por qualquer motivo, acharmos que a vida não tem jeito... Uma verdadeira pérola!
O filme
William Kamkwanba (Maxwell Simba) trabalha com o pai e a família nas terras herdadas de seus avós. Pela tradição local, dividem o espaço com os tios e seus filhos. Plantam milho no Malawi, na África, em terra árida, sempre a orar para Deus pelas chuvas que lhes garantam a produção, para sua subsistência e vendas.
Os pais de William, diante da dura condição de vida local, acreditam que é importante oferecer a seus filhos a possibilidade de um futuro melhor. Apesar de não terem estudado, percebem na educação esta riqueza que lhes permitirá vida mais próspera. A filha mais velha já foi para a escola e, agora, inicia-se o ciclo de estudos do menino, que para isso, ganha um uniforme e verdadeiramente vibra com a educação que passará a ter. Estudar e trabalhar, ajudar a família no tempo disponível a arar a terra e ganhar o pão de cada dia.
A morte do irmão de Trywell Kankwanba (Chiwetel Ejiofor), pai de William, muda o comando das terras para seu sobrinho que, com isso, passa a conduzir sua produção de forma independente em relação a seu tio. O momento é difícil, ainda mais porque o governo, comprador da produção excedente, oferece preços baixos pelo fruto da colheita na região. Isso motiva uma revolta local, com a maioria dos produtores rejeitando a oferta e alguns outros, liderados pelo sobrinho de Trywell, aceitando os valores impostos pelos governantes.
O período de seca, um componente que dificulta ainda mais a vida da comunidade agrícola da região, é ainda maior do que o esperado e, com isso, a terra fica extremamente árida, difícil de trabalhar e a produção não colhe os frutos esperados. A fome, os saques, embates com o governo e a evasão de famílias inteiras os deixa a beira do caos. Até a escola é fechada...
Como sobreviver a este momento tão inóspito, de tantas dificuldades, sem a água necessária para realizar o plantio? É dos livros escolares, das aulas de ciências que vem a inspiração para que William se transforme no “menino que descobriu o vento” e que, com isso, busque a resposta para as grandes dificuldades e desafios que se colocam para toda a sua comunidade contando com recursos ínfimos como rádios e pilhas velhas, uma bicicleta usada e muita disposição, criatividade e sabedoria.
Para Refletir
Tantas são as vezes em que, mesmo diante da fartura que o mundo contemporâneo nos oferece, nos mostramos fracos e incapazes de buscar soluções para problemas que se colocam diante de nós. É preciso força, coragem e disposição. Do mesmo modo que é necessário usar os conhecimentos que adquirimos, pessoal e coletivamente, enquanto humanidade, para que as adversidades possam ser superadas quando surgirem. O estudo, a ciência, a colaboração e o trabalho são elementos decisivos para a humanidade ter chegado aonde chegou. Um filme como “O menino que descobriu o vento” é inspirador nesse sentido e, como tal, deve mobilizar professores e alunos a pensar, propor soluções, desenhar e arquitetar um futuro melhor para si mesmos e para todos. Que tal, por exemplo, começar a pensar em problemas próximos, do cotidiano, coisas simples que atrapalham a vida de toda a comunidade, e criar projetos para levar para as autoridades de seu município?
Ciência e laboratório, usando não apenas os kits experimentais vendidos por empresas especializadas, mas também aquilo que muitas vezes é apenas sucata ao final do dia ou da semana na casa dos alunos e dos professores... Criar projetos e práticas plausíveis, inteligentes, voltadas para a solução de dificuldades reais, seja nas ciências naturais ou em humanidades, é algo a ser feito nas escolas. Busquem projetos já existentes na área. Pensem fora da caixa para criar iniciativas novas e, com isso, motivar e mobilizar os estudantes para inventar e produzir um amanhã melhor.
Colaborar é mais do que um termo que hoje ganha destaque por conta dos projetos relacionados a tecnologia e que, por meio da internet, permitem a pessoas de diferentes localidades criar e desenvolver sistemas, softwares, aplicativos, hardware e, com isso, solucionar problemas comuns a tantas pessoas de diferentes países e cidades. Precisamos fazer com que a colaboração esteja presente no cotidiano, nas pequenas ações do dia a dia, como na manutenção de lugares limpos, na própria escola, por exemplo, ou na luta contra o desperdício de água, entre outras situações que poderíamos mencionar. Se todos se derem as mãos, como no filme de Chiwetel Ejiofor, o resultado final será, certamente, muito melhor para todo o mundo.
Veja o trailer do filme:
Ficha Técnica
- Título: O menino que descobriu o vento
- Título original: The boy who harnessed the wind
- País/Ano: EUA, Malawi, França e Reino Unido, 2019
- Duração: 113 minutos
- Gênero: Drama
- Direção: Chiwetel Ejiofor
- Roteiro: Chiwetel Ejiofor
- Elenco: Chiwetel Ejiofor, Maxwell Simba, Aïssa Maïga, Noma Dumezweni, Joseph Marcel.
João Luís de Almeida Machado
Consultor em Educação e Inovação, Doutor e Mestre em Educação, historiador, pesquisador e escritor.
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