Hannah Arendt e a crise na educação

A autora alerta para o fato de que a crise na educação precisa ser examinada à luz do impacto das experiências políticas no século XX


Hannah Arendt escrevendo, a foto está em preto e branco.

A pensadora alemã Hannah Arendt se destacou ao longo de sua vida como uma defensora incansável da liberdade. Tendo nascido na Alemanha, no início do século XX (Linden, 14/10/1906), presenciou o surgimento do nazismo e do fascismo no contexto europeu do entre guerras e, por isso, produziu obra contundente em defesa da família e dos direitos individuais das pessoas. Percebeu o quanto as "sociedades de massa", como aquela preconizada pelo nazi-fascismo, tendia a sufocar as individualidades e agir de forma opressora quando seus interesses e práticas fossem contrariados ou contestados.

Arendt entendeu que, para uma análise correta do quadro social seria preciso se despir de seus preconceitos e não buscar somente e prioritariamente na História as justificativas para os erros do presente.

A educação, como parte importante dos elementos sociais estabelecidos na sociedade contemporânea também foi abordada por Hannah Arendt em seus escritos.

Depois de fugir da Alemanha Nazista e se refugiar na França, sempre tendo contato com intelectuais de alta estirpe (como Heidegger quando ainda residia e estudava em seu país de origem, e Walter Benjamin, no período em que viveu em Paris), Hannah Arendt iniciou carreira acadêmica destacada quando já estava estabelecida nos Estados Unidos, entre os anos 1940 e 1950.

Foi neste período que a filósofa política publicou o texto “A crise na educação”. Neste texto, são apresentados e discutidos aspectos relacionados, por exemplo, ao excesso de autonomia que estava sendo dado as crianças.

Segundo Hannah Arendt a valorização da autonomia do mundo infantil, com a sociedade (estado, escola, família) delegando para a própria criança, um ser em formação, a responsabilidade da condução e governo de suas vidas constituía um grande risco e, até mesmo, de acordo com suas palavras, uma aberração.

Se pensarmos na clássica obra “O senhor das Moscas”, de William Golding, publicado em 1951, como referência para tal pensamento, já que nesta obra temos a história de crianças inglesas isoladas numa ilha após a queda do avião que as transportava e que, sem a presença de adultos, regridem a uma condição de selvageria, talvez seja mais fácil compreender a temática trazida a público pela filósofa alemã.

O destaque a esta situação refere-se a falta de elementos culturais, históricos, morais e científicos, oferecidos pela humanidade por meio de suas diferentes instituições sociais, como a família, a escola, a religião e o estado, entre outros, além, é claro da imaturidade e inexperiência das crianças para resolver as questões que o mundo irá apresentar, propor e cobrar delas.

O que é narrado em “O senhor das moscas” seria, portanto, uma representação aproximada daquilo que Arendt antevê para a sociedade em que os adultos e suas instituições passam a delegar para as crianças as responsabilidades que lhes cabem, deixando de orientar seus passos, de educar tais infantes, de definir limites ou parâmetros e, ao assim fazê-lo, permitir que cresçam sem que se apropriem dos elementos essenciais para a vida em sociedade.

Ainda que uma analogia possa ser traçada entre a obra de Golding e o pensamento de Arendt, é claro que o cenário caótico estabelecido pela ficção é apenas uma alegoria, uma representação e que, no mundo real, a autonomia das crianças teria repercussões não tão trágicas ou desastrosas, inferindo problemas em nível imediato, pessoal que, por sua vez, poderiam gerar consequências sociais posteriores

 

A pensadora alemã talvez já tivesse em mente a infantilização do mundo adulto em suas entrelinhas, a sociedade em busca do prazer imediato e querendo se liberar das responsabilidades inerentes a família, ao trabalho, a vida coletiva.

Ao conceder as crianças maior autonomia, os pais, as escolas e a sociedade como um todo estariam, literalmente, “lavando as mãos” quanto a esta grande responsabilidade. E, certamente, as crianças não estavam, como não estão e não estarão, prontas e aptas a realizar o seu amanhã sem contar com a supervisão, a orientação, a educação e a experiência prévia acumuladas pelos adultos.

Em seu texto sobre a educação Arendt aponta para a perigosa perda da autoridade em nome da liberdade. Segundo ela, ter autoridade não é sustentar uma postura totalitária. Num cenário de pós-guerra, no qual regimes de exceção como o nazi-fascismo que se estabeleceu na Alemanha e na Itália, e o socialismo stalinista, na União Soviética, podem ter levado a filósofa alemã a ponderar que, a contrapartida ocidental, ou seja, a democracia excessivamente permissiva que estava a surgir não seria a resposta adequada para as questões sociais prementes que surgiam, em especial aquelas relacionadas a educação das crianças.

Para Arendt, essa ambiguidade da perda da autoridade não pode existir na educação e, nem tampouco, na criação familiar. As crianças não devem recusar a autoridade docente ou paterna/materna como se estivessem sendo oprimidas pelos adultos.

A segunda ideia importante destacada no texto “A crise da educação” está associada a própria pedagogia e seus métodos, processos e linhas de ação e pensamento. Segundo Arendt, quando ocorre na educação a desvalorização do ensino específico e focado em áreas do conhecimento, dando-se maior ênfase a um saber mais aberto, amplo e geral, tal enfoque retira a autoridade docente. Arendt alega que a formação e a autoridade do professor acabam sendo prejudicadas e enfraquecidas perante os alunos pela falta de um domínio mais efetivo sobre sua área de atividade causado por este deslocamento quanto aos assuntos e temáticas a serem ensinados. De acordo com esta linha de pensamento, a generalização dos saberes sufoca o conhecimento particular e não permite a compreensão mais aprofundada daquilo que se ensina, criando-se um saber mais difuso, fraco e que, como repercussão, tende a formar as crianças sem a necessária base.

O texto sobre educação de Hannah Arendt, ainda traz um terceiro pressuposto importante, fundamentado na ideia de que ao se enfatizar a praticidade do ensino, só percebendo efetivo valor naquilo que é prático, útil, objetivo, a sociedade, o estado, os educadores e a família cometem mais um erro considerável. O aprendizado, pondera Arendt, é minimizado frente ao fazer. A filósofa, nesse ponto, está se posicionando sistematicamente contra a influência da concepção pragmática de educação presente em seu tempo.

O que se percebe, neste debate proposto por Hannah Arendt, mesmo décadas após a produção do texto em que se encontram tais ideias e, da morte da filósofa alemã (04/12/1975, em Nova York), é que tais proposições são alertas ainda atuais e válidos, numa sociedade em que, cada vez mais, as crianças e adolescentes são empoderados, o fazer se sobrepõem ao saber e o pensamento especializado e com profundidade são deixados em segundo plano, abrindo-se espaço para as generalizações...

 

Quer saber mais?

Seguem abaixo obras de referência da pensadora Hannah Arendt:

- A crise na Educação. Disponível em Clique aqui.

- Entre o passado e o futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.

- O que é política? Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2002.

- Crises da república. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004.

- A promessa da política. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2009.

- A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.


João Luís de Almeida Machado

João Luís de Almeida Machado

Consultor em Educação e Inovação, Doutor e Mestre em Educação, historiador, pesquisador e escritor.

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