Renascer

Porque temos que passar por traumas tão grandes para repensar nossas existências?


Flores rosa

Abri os olhos. Dormira por algumas horas. Ao menos era o que pensava naquele momento. Só conseguia lembrar do impacto. A batida repentina. O carro que ultrapassara o sinal e avançara na minha direção. Depois disso, foi somente escuridão. Não sabia ao certo o que se passara desde então. Mas na minha mente, fora a repercussão do acidente, ficara a impressão de que tudo tinha ocorrido quase agora...

Abrir os olhos foi difícil. Muito mais do que parecia ser das outras vezes. Era como se estivesse levantando pesos com os olhos. Pensei que ia encontrar alguém conhecido quando acordei, mas somente uma enfermeira apareceu. Surpresa, saiu do quarto e logo chamou algumas pessoas. Eles vieram, todos, o mais rápido que puderam. Também pareciam não acreditar no que viam.

Reconheci aos poucos cada um deles. Primeiro minha esposa. Parecia ter envelhecido muito rapidamente. Talvez fosse o desgaste com toda aquela situação. Logo atrás dela percebi uma moça, na casa dos vinte e poucos anos, parecia muito com minha filha, que contava apenas 12 anos quando meu acidente aconteceu... Junto com ela, um garoto, recém-saído da adolescência, com aspecto de quem acabou de entrar na faculdade... Também me parecia muito familiar... Foi então que me dei conta... 

De meu acidente até aquele momento haviam se passado alguns anos... Talvez 7 ou 8, quem sabe até um pouco mais... Por isso eles estavam tão mudados. Eu estivera em coma e eles ali, ao meu lado, rezando por minha recuperação, torcendo por um milagre, acreditando até o último minuto que um dia, talvez, eu voltasse a abrir os olhos...

Suas orações enfim estavam sendo atendidas. Como os olhos, também todos os outros membros ou funções corporais foram retornando com o passar dos dias, semanas e meses que se seguiram. Havia perdido peso, parado na cama do hospital precisei de muita fisioterapia e exercícios para recuperar a mobilidade. Tinha renascido. Uma nova oportunidade me esperava.

Como aproveitá-la? Viver teria que significado agora? Quais escolhas faria? Trabalharia tantas horas quanto antes? Abriria mão da família pela carreira? Estranhamente nenhum de meus colegas de trabalho ou superiores aparecera durante minha recuperação. Me disseram que a empresa se encarregou de pagar as contas hospitalares e que, durante alguns dias e semanas, logo depois do acidente, algumas pessoas de lá compareceram para visitar-me e prestar solidariedade aos familiares.

Depois disso, somente as responsabilidades legais foram cumpridas. Não havia mais laços a nos unir, a não ser aquilo que estava estipulado nos contratos. Talvez para eles fosse melhor que eu tivesse morrido logo, lhes acarretaria menores custos... 

Além da esposa e dos filhos também meus pais compareceram todo o tempo. Auxiliaram nos tempos duros que se seguiram. Deram suporte financeiro aos meus filhos e esposa quando necessitaram. Quando parecia que tudo estava perdido, demonstravam confiança e a todos animavam dizendo que eu conseguiria superar minha situação e retornaria. Estavam certos.

Trabalharia, é claro, mas não deixaria para trás os momentos com meus filhos ou com minha esposa. Tentaria conciliar, melhorar a qualidade de vida, dando mais tempo para mim e para os meus. 

Penso hoje que se não tivesse me acidentado e passado por este apuro tão grande não mudaria meu ritmo e nem tampouco os objetivos que então norteavam minha vida. Porque temos que passar por traumas tão grandes para repensar nossas existências? Será que somente com a proximidade da morte ou por conta de um acidente ou enfermidade grave nos damos conta daquilo que realmente faz a vida valer a pena?

Deitado naquela cama de hospital não vira a vida passar. Não pudera apreciar o crescimento de meus filhos, sua passagem por fases tão marcantes da vida. E se estivesse vivo, teria visto? Com tanto trabalho pela frente, o quanto realmente vemos do crescimento de nossos filhos? Perdera oportunidades tantas de amar intensamente minha esposa pelo infortúnio pelo qual passara. Antes da batida, será que dava a ela todo o carinho e amor que merecia? E nos anos seguintes, quando em coma, teria percebido o sentimento intenso que sentia por mim e valorizado?

Quando voltei para casa, ainda debilitado, olhava pela janela e via crianças correndo na vizinhança. Tudo parecia novo. Tudo tinha um valor e um sabor que não percebia nestas tão simples situações. O bolo a assar no forno e seu delicioso cheiro a espalhar-se pela casa. O café quentinho sendo colocado na xícara para ser sorvido juntamente com aquele bolo. Os velhos amigos, aqueles de tantos momentos inesquecíveis do passado, chegando para visitas. O bate-papo na sala, descontraído, os sorrisos, as risadas, os abraços e afagos...

A vida mudara. Sentia que aquela ausência temporária me aproximara mais da família, amigos e do que era mais simples. Também me levara mais próximo de Deus. A fé que um dia estivera distante de meu cotidiano retornara, forte e presente. 

Passei a me emocionar com mais frequência. As lágrimas chegavam quando um abraço recebia de meu filho ou um telefonema era dado por minha menina, agora uma moça, uma profissional da educação. Percebi que o sentido maior da vida provinha das relações que conseguíamos estabelecer, de fato, com as pessoas, a natureza, o mundo ao nosso redor e também com Deus. Meu acidente, por mais estranho que pudesse parecer, de certa forma me ajudara, me libertara, me proporcionara a chance de renascer de fato...


João Luís de Almeida Machado

João Luís de Almeida Machado

Consultor em Educação e Inovação, Doutor e Mestre em Educação, historiador, pesquisador e escritor.

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