Matrix 20 anos depois...
E se Cypher estivesse certo?
Matrix é uma fonte inesgotável de oportunidades de reflexão. Em 2019, o filme original da trilogia completa 20 anos e continua a oferecer oportunidades para reflexão. Neste texto, por exemplo, é destacada a passagem em que Cypher, o traídor do grupo liderado por Morpheus, em poucas palavras, destaca os motivos de sua deserção em relação aos rebeldes que lutam contra a Matrix. Leia, a seguir, o trecho do roteiro original, traduzido para o português, que apresenta o pensamento explicitado pelo personagem Cypher.
Agent Smith: Nós temos um acordo, Sr. Reagan.
Cypher: Você sabe... Eu tenho consciência que este belo pedaço de bife não existe. Eu sei que quando eu o coloco em minha boca, é a Matrix que está dizendo para meu cérebro que ele é suculento e delicioso. Depois de 9 anos... Você sabe do que me dei conta? Que a ignorância é uma benção...
Agent Smith: Então temos um acordo?
Cypher: Eu não quero me lembrar de nada. Nada. Você entendeu? E eu quero ser rico. Você sabe, alguém importante, um ator...
Agent Smith: O que você quiser, Sr. Reagan...
Li alguns artigos em que os autores colocavam em pauta a possibilidade de Cypher (o traidor do grupo liderado por Morpheus, vivido nas telas por Joe Pantoliano) estar certo quanto a seus posicionamentos. Só para lembrar e entender melhor o que estou falando, como se percebe no trecho transcrito do roteiro do filme, Cypher se vende aos agentes da Matrix e entrega segredos do grupo de resistência que acabou de incorporar Neo (Keanu Reeves) a suas atividades.
Isso resulta na morte de uma das mulheres do grupo e fragiliza as ações previstas por Morpheus (Lawrence Fishburne). Ao fazer isso, ele se refere a sua deserção como sendo uma opção consciente, em que ele escolhe a ilusão da Matrix (ainda que apenas efeito de induções eletrônicas sobre o cérebro humano) pois elas lhe garantem conforto, satisfação, riqueza e benefícios que o mundo real, em que ele e seus ex-colegas atuavam como autênticos guerrilheiros era sujo, nefasto, desconfortável e desprovido de qualquer benefício aparente. Somente a liberdade não lhe interessava... Na Matrix era possível comer filé (ainda que virtual), enquanto na batalha dos humanos contra as máquinas os alimentos eram desprovidos de sabor... Cypher escolheu a Pílula Azul...
Imaginem-se então na pele de Cypher... Esse não é, certamente, um exercício que as pessoas gostem de fazer... Ninguém quer ser Judas... Todos querem ser percebidos e vistos como amigos fiéis movidos por causas nobres... Mas será que em nossas vidas, muitas vezes, não estamos optando por escolhas semelhantes a de Cypher...
O sentido prático de nossas existências em vários casos [na maioria para ser mais exato] nos compele a opções racionais. Nossos cérebros procuram, a todo momento definir quais seriam os caminhos mais corretos e adequados a nossos interesses e possibilidades. Nem sempre, ao fazer essas escolhas, conseguimos conciliar nossos interesses mais básicos e prementes (financeiros, por exemplo) com princípios éticos e de cidadania em que acreditamos...
É isso o que, de certa forma, leva as pessoas a pensarem mais no poder do sonante (dinheiro) do que na defesa dos direitos humanos ou da natureza ao se associarem a projetos em que se fabricam armas ou se devastam florestas... E como elas se justificam? Dizendo que a parcela de responsabilidade que lhes cabe numa guerra ou no surgimento de desertos em locais onde antes haviam grandes florestas é mínima, pois eles apenas cumprem ordens e o fazem para garantir sua sobrevivência...
Como resolver esse dilema? Admitindo que estamos mais para Cypher do que para Neo ou Morpheus? Ou refletindo (e agindo dentro das premissas surgidas dessas reflexões) com maior profundidade sobre nossas opções para que escolhamos os caminhos mais equilibrados, nos quais consigamos conciliar sobrevivência e ética...
João Luís de Almeida Machado
Consultor em Educação e Inovação, Doutor e Mestre em Educação, historiador, pesquisador e escritor.
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