Letras ou números?
“Pessoas não são números, são como letras, querem contar suas histórias...” (Thomas Schell, personagem do filme “Tão forte e tão perto”)
Vivemos num mundo de números, cada vez mais. A quantificação nos permite racionalizar e organizar dados. Ao definir que este é o padrão firma-se o racionalismo cartesiano, que orienta nosso olhar a buscar respostas lógicas e, com elas, estipular padrões ou modelos que orientam os movimentos humanos - pessoais ou profissionais, individuais ou coletivos – na íntegra.
O sonho é antecipar os movimentos, de tal forma que até mesmo o que é aparentemente imprevisível, nos seja perceptível antes de acontecer. Todos os cálculos matemáticos, seja na economia ou em questões sociais, têm como meta a prevenção em relação aos problemas, dramas e dificuldades.
Na saúde, ao mapear o corpo humano, com o sequenciamento do genoma humano, por exemplo, se almeja o corpo são, a saúde perfeita, a detecção de anomalias genéticas ainda no bebê em gestação, para que ele nasça praticamente perfeito. Sua vida podendo ser prolongada desde então e com menor grau de sofrimento durante sua existência.
Nos relacionamentos, a busca do par perfeito, com os dados das pessoas, de preferência contando com sua total honestidade ao disponibilizá-los, permitiria configurar casais em harmonia, com menos embates e mais espaço para o amor e o companheirismo. Ao unir estas pessoas seria possível até mesmo verificar como seriam seus filhos num futuro próximo, das características físicas as psíquicas e emocionais, talvez até mesmo olhando para suas potencialidades profissionais.
Para as empresas e o sistema como um todo, os algoritmos cruzados de forma inteligente e rápida permitiriam alto grau de acerto na contratação de pessoas e, até mesmo, nos negócios a serem fechados tendo por base os dados das empresas com as quais querem firmar parcerias. Funcionários ou colaboradores de acordo com o padrão da empresa representariam menos problemas trabalhistas, maior produtividade, engajamento e compreensão total em relação à filosofia, metas e objetivos.
A matemática e seus números cruzados dentro de computadores e redes conectadas em velocidade cada vez maior tornará realidade o sonho de Descartes.
Os seres humanos mapeados pela genética e pela cibernética, de forma espontânea, com a inserção diária de seus dados nas redes sociais, cada vez mais permitem que suas identidades sejam conhecidas, reconhecidas. Suas características são trabalhadas em fórmulas e equações de tal maneira que José, Maria ou Antônio, sejam recebidos no Rio de Janeiro ou em Hong Kong por seus interlocutores já sabendo como são, do que gostam, como reagem, como trabalham...
Tudo ali, na palma da mão, a um toque na tela do tablet ou do smartphone. Não há mais espaços para a surpresa. O encantamento do imprevisível cede lugar ao comportamento predito e esperado.
Futuro? Ficção? Cheque sua caixa de e-mails ou observe as mensagens que recebe em suas redes sociais e perceba como cada vez mais direcionam para cada uma das pessoas conectadas do mundo as mensagens e conteúdos que lhes interessam. Se você gosta de cozinhar, receberá mensagens sobre receitas, livros ou programas de gastronomia. Se o cinema é sua paixão, serão mensagens sobre os últimos filmes lançados que irá receber ou então resenhas destas produções. Se viajar faz sua cabeça, prepare-se para receber ofertas de pacotes turísticos ou descontos em viagens de avião...
Somos números cada vez mais. Teoricamente a lógica matemática, numa composição sem fim de dados que nos explicam, processadas em algoritmos cada vez mais complexos, nos permitem a miragem da sociedade perfeita, organizada, plena e sem doenças.
Somos letras cada vez menos. Engolidos pela correria mal temos tempo de nos falar, de expressar aquilo que os números e fórmulas compostas não percebem. Se é possível contar os passos, as batidas do coração ou a quantidade de sangue que se bombeia por segundo em nossas veias, não é visível a alma, o sentimento e a psique. As palavras brotam e jorram nas telas dos computadores, por necessidade profissional ou pessoal, mas quem lê? Nas entrelinhas daquilo que digitamos ou falamos o que há de imperceptível aos sensores eletrônicos e aos algoritmos matemáticos?
As pessoas querem contar suas histórias. Precisam ser ouvidas. Suas vozes estão perdidas na multidão. Nem mesmo aqueles que se encontram lado a lado, no metrô, no ônibus, no escritório ou em casa, parecem atentar para o que ou outro está a falar, para as palavras que vem do coração. São sussurros cada vez mais, distantes, inaudíveis...
As tecnologias permitem maravilhas. A matemática e seus algoritmos igualmente oferecem o melhor de si pelas pessoas. Não há dúvidas quanto a isso. Prevenir doenças, aumentar a produtividade, melhorar o relacionamento entre as pessoas e tudo o mais que for possível com o auxílio dos números, de computadores e das redes informacionais é bem-vindo, só não se pode com tudo isso, tornar as pessoas previsíveis, mudas, insones, submissas, ausentes, distantes...
Ouvir, participar, compartilhar, desfrutar, personificar e surpreender as pessoas. Contar suas histórias, seus encontros, suas alegrias ou decepções. Ficar doente, sofrer por amor, ser solidário com um amigo, tirar nota baixa em uma prova ou não conseguir atingir uma meta no trabalho são partes da existência humana tanto quanto os êxitos.
Já dizia Fernando Pessoa “O perfeito é desumano, porque o humano é imperfeito”. Talvez por ser poeta, homem das letras, ciente das limitações e das potencialidades humanas, suas palavras definem limites que parecemos a todo o momento desafiar... creio que ao desafiarmos aquilo que é tão evidente para qualquer um de nós, somente fazemos valer o que Fernando Pessoa tão brilhantemente firma sobre nós, ou seja, que somos imperfeitos...
João Luís de Almeida Machado
Consultor em Educação e Inovação, Doutor e Mestre em Educação, historiador, pesquisador e escritor.
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