Nietzsche e a educação
Uma reflexão acerca do papel da educação tendo por base o pensamento da crítica nietzschiana ao sistema educacional alemão de sua época
O que há nos bastidores? Quando uma peça é apresentada ao público ou durante a produção de um filme temos consciência de que atrás das cortinas há um intenso movimento dos realizadores para que o desenlace, ou seja, a amostragem trazida para os espectadores, seja a melhor possível, para que o sucesso seja atingido.
E na sociedade, o que ocorre nos bastidores? Já pensou a respeito disso? Frederick Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão contemporâneo, provocador e rebelde como era, em suas obras, se propôs a mostrar as motivações e interesses que estão ocultos e que, por conta disso, mascaram o que para muitos são valores absolutos, verdades estabelecidas, presentes em conceitos como bem, mal, verdade, ética...
Nietzsche percebeu que tais conceitos inquestionáveis criavam o que chamou de “moral do rebanho” pois levam as pessoas a agir de forma a aderir e se comportar a partir de premissas em relação as quais nem se preocupam em realmente entender, auferir, analisar e definir se concordam ou não com o que representam, para então se posicionar.
O pensador alemão acreditava que, uma vez conscientes do que realmente lhes é proposto, as pessoas poderiam fazer escolhas mais seguras e, com isso, se tornarem quem potencialmente podem ser, sem que tais elementos sociais as limitem a simplesmente constituir parte do rebanho.
O sistema educacional, neste sentido, para Nietzsche, constitui elemento de uniformização que, por meio de currículo, aulas, saberes pré-estabelecidos, comportamentos esperados e todos os seus artifícios, tem como propósito definir um modelo de ser humano condizente com as verdades dominantes, cujos interesses ocultos se relacionam ao que o sistema (num plano mais amplo), o estado, o mercado e seus representantes esperam.
A formação técnica, por exemplo, segundo o pensador alemão, seria uma tradução clara do propósito de preparar as pessoas para uma vida adequada ao que o mercado, o estado e a sociedade esperam delas, ou seja, tornando-as leais a princípios, regras, comportamentos e ações desejadas por quem comanda e define a trajetória do rebanho e se apropriando de saberes e técnicas que os tornam úteis, parte do processo produtivo, elementos da cadeia que perpetua o funcionamento estável da sociedade em conformidade com seus interesses.
Não que Nietzsche não acreditasse que a educação é necessária, mas para ele o desenvolvimento humano depende de aprimoramento pessoal que, por sua vez, se relaciona ao acesso à cultura. Não é a erudição que o filósofo propõe, a busca por uma cultura elevada, pautada em bastiões e referências históricas. Este tipo de saber pautado em demasia na alta cultura, de base tradicional, causava um impedimento ao novo, paralisava o crescimento real, impedia as pessoas de pensar “fora da caixa”, como modernamente apregoamos.
O acesso à cultura, erudita ou popular, tradicional ou inovadora, deve proporcionar as pessoas seu pleno desenvolvimento, levando-os a compor suas personalidades, tendo presença de espírito, voz ativa, capacidade de articulação e participação na vida em sociedade. Neste sentido acreditava Nietzsche que era preciso ir além da proposta histórico-cientificista que dominava a educação, promovendo como parte importante do conhecimento e formação a inclusão efetiva da arte e da filosofia no ensino. Estes saberes, segundo o pensador, por serem instáveis, acabam propondo desafios, novas reflexões, desestabilizando e tirando o mundo de sua zona de conforto e acomodação.
Elementos fortes na educação como a história e o caráter prático dos saberes ensinados acabam por, literalmente, “travar” ou impedir o avanço pessoal e social pois definem padrões elevados, distantes, por vezes aparentemente impossíveis e delimitam até onde as pessoas conseguem chegar.
O aspecto prático da educação tem ainda, como efeito colateral, que as pessoas se sintam desestimuladas a leitura e ao estudo de línguas, ocasionando falta de subsídios, argumentos, vocabulário e, consequentemente, de capacidade de articulação de diálogo, elemento essencial para o crescimento humano, seja na esfera individual ou na grupal.
A leitura, por sua vez, vista por muitos como um exercício passivo através do qual as pessoas assimilam informações e conteúdo, de acordo com Nietzsche, tem poder transformador e, portanto, grande e imprescindível valor para a formação humana. A leitura, se consciente, pode não apenas agregar novos saberes, mas gerar diálogo entre o leitor e o escritor, fomentar a imaginação, legar novos universos e, literalmente, criar pontes para que as pessoas cresçam. A visão contemporânea de educação e de leitura estão em consonância com o que Nietzsche pensou no século XIX.
Para Nietzsche, em sua filosofia, a vida depende da vontade de potência, ou seja, de acumular forças, o que neste sentido infere tanto o aspecto físico quanto o intelectual, a instrução e o estudo, o acesso à cultura, a leitura. Somos potenciais seres humanos que, dependendo dos caminhos, escolhas, leituras, relações que travamos com as pessoas e com o mundo, podemos (ou não) realizar aquilo que temos dentro de nós como potência.
Neste sentido, a potencialização do ser se concretiza pela vontade do próprio ser, dos incentivos e do fomento alheio (vindo das pessoas com as quais convive, como sua família, amigos e demais membros da comunidade ou, ainda, em escala mais ampla, da própria sociedade). E, se a sociedade, nos bastidores, opera de forma a tolher o crescimento ou limitar até certo ponto, com verdades acabadas e com a moral do rebanho, até que ponto é possível, para um ser humano realmente florescer em sua máxima potencialidade.
Nietzsche afirma, então que a escola precisa se arriscar, cultivando e promovendo uma cultura de experimentação, onde arriscar não seja a exceção, mas a regra, na qual os educadores, por sua vez, não sejam apenas reprodutores de informação, mas mestres e artífices de si mesmos e de seus alunos, atuando com disciplina e paciência, elementos fundantes do saber bem acabado, profundo, instigante e transformador.
Como incendiário e rebelde, Nietzsche percebeu a sociedade e a educação em seu conservadorismo e, na contramão deste pensamento retrógado, propôs a filosofia, a arte, o questionamento, a leitura e a educação como potencializadores de um novo e liberto ser. Tão radical e contemporâneo...
João Luís de Almeida Machado
Consultor em Educação e Inovação, Doutor e Mestre em Educação, historiador, pesquisador e escritor.
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